Novas medidas capitalistas foram tomadas no país, como uso de internet no celular em casa e abertura de capital estrangeiro e empresas privadas A ilha de Cuba, localizada na América Central, passa por drásticas mudanças desde o ano passado, com a eleição de um novo presidente fora da família Castro e uma nova Constituição que liberou a propriedade privada no país. O publicitário goiano Célio Rezende viajou para a ilha no final de fevereiro e conversou com o Jornal Opção sobre a realidade social e política do país, a rotina dos cubanos e as expectativas que eles têm com as mudanças aprovadas na Constituição. A sociedade cubana vive sob um regime socialista desde a chamada “revolução cubana” em 1959 liderada pelo argentino Ernesto Guevara e os irmãos cubanos Fidel e Raúl Castro, nascidos no povoado de Birán. O novo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, que está no poder desde abril de 2018, é o primeiro a ser vaiado desde a revolução, conta Célio. “Fidel Castro nunca foi vaiado porque os cubanos tinham admiração por ele. A revolução era sustentada nessa moral que ele tinha com o povo. Agora não tem mais um líder carismático à frente da revolução e a televisão estatal fica o dia inteiro falando bem do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e falando mal dos países que querem derrubar a Venezuela, como Estados Unidos e Brasil”. A nova Constituição cubana trouxe muitas mudanças aos seus cidadãos. Entre as principais e consideradas mais significativas pelos próprios cubanos estão o uso de internet pelo celular dentro de casa, o casamento homossexual, o reconhecimento ao mercado e investimento privado e abertura de empresas, parecido com o CNPJ brasileiro. O início da viagem começa com o pedido de um visto ao governo cubano, sem ele não se entra na ilha. O formulário é enviado para o e-mail do próprio embaixador de Cuba, em Brasília, e depois de algumas semanas o solicitante recebe uma espécie de cartão com a autorização para entrar no país. “Eu mandei a carta para a embaixada em Brasília. Paguei os custos de Correios de envio e de retorno das cartas, que fica quase R$ 300. Eles te mandam um cartão de visto. Mas não precisa ir à embaixada, pode enviar um email direto para o embaixador, que é do Gmail, ele responde com uma série de formulários para preencher, inclusive o modelo da carta convite para o cubano preencher”, explicou como funciona o trâmite burocrático. Com o visto em mãos, é a hora de comprar as passagens aéreas. A viagem é feita exclusivamente pela companhia Copa Airlines, a única autorizada a decolar e pousar em Cuba. “Copa é a única companhia área que entra em Cuba. Peguei o vôo de Goiânia para São Paulo e depois Panamá, até chegar a Cuba. Nota-se uma diferença logo de cara porque os aviões são mais velhos, a tela do DVD não funciona, por exemplo. A Copa não coloca os mesmos aviões que fazem o trecho de São Paulo aos Estados Unidos para fazer Cuba, de jeito nenhum”, conta Célio. O valor das passagens de ida e volta ficou R$ 4.500, em classe especial, considerado valor barato pelo publicitário dado a distância e as escalas previstas no caminho – são 11 horas de vôo. A curiosidade pelos países latino-americanos é tão grande que Célio aprendeu a falar espanhol para fazer as viagens. Em 2012 ele cismou que queria fazer amizade com o povo de Cuba e naquela época apenas os universitários tinham acesso à internet. “Fiz amizade com o único grupo de universitários que acessava a internet, o pessoal do curso de Artes Plásticas”, conta o publicitário. Célio explicou que o turista pode entrar em Cuba por duas portas: a primeira tem que se comprovar o hotel que vai ficar do primeiro ao último dia ou algum cubano te convidar. “Essa amiga me mandou a carta de convite, onde ela fornece todos os dados dela e fica responsável por mim no país. Esse é o grande problema porque se você faz algo temeroso na ilha, você fica com medo de prejudicar a pessoa que te convidou”. Essa amiga do publicitário trabalha no Conselho Nacional de Artes, primeiro escalão do governo cubano. Saúde e medo dos norte-americanos A saúde cubana é famosa no mundo inteiro pela grande quantidade de pessoas que tem acesso à faculdade de Medicina. Uma a cada 100 pessoas na ilha trabalha no sistema de saúde e existe um médico para cada grupo de 160 cidadãos. É fácil encontrar um médico na rua, no mercado, numa praça. “Mas toda hora você acha alguém da família do médico fazendo outra coisa, como o filho vendendo charuto falsificado na praça”, revela o publicitário. Apesar da enorme quantidade de médicos disponíveis no país, o atendimento é ruim e falta todo tipo de medicamento. Célio diz que pediram para que ele deixasse os remédios que levou para a viagem, como dipirona, remédio para diarréia, antialérgicos e outros. “O médico, por exemplo, receita um comprimido de dipirona por paciente e se ele continuar a sentir dor, tem que voltar para o médico receitar outro comprimido”. O programa brasileiro “Mais Médicos” é assunto o tempo todo e em qualquer lugar, principalmente quando se tem um brasileiro por perto. “Quando descobriam que eu era brasileiro, a primeira pergunta me fazia sobre o programa era ‘quantos cubanos ficaram lá?’, porque o governo não tem nenhuma transparência com o programa”. Célio respondia aos cubanos que também não sabia quantos médicos ficaram porque também não tem muita transparência no Brasil sobre o programa. Existe uma curiosidade sobre os médicos que saem do país para esses programas de saúde: quem fica fora do país por mais de dois anos perde a cidadania cubana e vira apátrida – uma pessoa de lugar nenhum. O publicitário explica que existe uma névoa que separa a política da população. Eles não sabem quem são os membros do governo, como os nomes dos ministros, apenas do presidente. O governo, por sua vez, alega que é pela segurança nacional. “Se o cidadão souber quem é o ministro da Saúde, por exemplo, eles acreditam que infiltrados dos Estados Unidos podem matar o cidadão”. No ano passado caiu um meteorito na cidade de Pina Del Rio causando um grande estrondo no país, quebrou vidros de janelas e telhados de muitas residências. Os cubanos acharam que eram os militares norte-americanos atacando o país. Chegada no aeroporto e água fria Mas antes de buscar refúgio na residência da amiga, Célio se aventurou em um hotel oficial cubano. Os hotéis oficiais são mantidos e administrados pelo governo. “O governo é sócio de muitas empresas lá. Os hotéis são chamados de hotel oficial. Eles confiscaram todos os hotéis na época da revolução. O antigo Hilton, por exemplo, hoje se chama Havana Livre. Existem empresas farmacêuticas brasileiras lá, mas tudo em parceria com o governo”. Ao pousar no aeroporto, o táxi que o levou ao hotel custou 25 dólares. “Esqueci uma blusa de couro, passaporte e dinheiro no táxi. A recepcionista me pediu os documentos na entrada e expliquei para ela que tinha esquecido no táxi. Ela me garantiu que o taxista voltaria para devolver meus documentos em poucos minutos e permitiu que eu subisse sem documentos”, conta Célio. Poucos minutos depois a recepcionista liga no quarto dizendo que o taxista devolveu todos os pertences. “Os táxis oficiais são arrendados com o governo. Os cubanos estudados e que trabalham com o governo tem muito medo das leis. Se algum turista reclamar que foi assaltado e pegarem o assaltante, são de 20 a 30 anos de cadeia sem progressão de pena. A lei é dura e isso criou neles um temor de fazer coisa errada”. No hotel Bruzon, que fica na Praça da Revolução, só tinha água fria. “Todas as fotos que estão na internet são mentira. A maioria dos hotéis está em reforma, mas não vi ninguém trabalhando”, denuncia Célio. Diante do embaraço, o publicitário ligou na recepção para reclamar da água fria. Enviaram um técnico que não resolveu. Depois pediu na recepção para o mudarem para um quarto que tinha água quente. A mudança foi realizada, mas a água continuava fria. “O técnico disse que estava com um problema na placa que esquenta a água do hotel e seria resolvido em breve. No segundo dia não tinha nada resolvido. Voltei a reclamar. Um funcionário do hotel me chamou no canto e disse que mentiram para mim, que a água seria fria do primeiro ao último dia. Depois me deu um papel com o telefone dele dizendo que tinha uma casa de aluguel no centro, com preço mais barato que o hotel e água quente”. Célio não foi para a casa de aluguel do funcionário e ficou apenas três dias no hotel Bruzon. Segundo Rezende, os cubanos se preocupam muito com a possível queda do presidente venezuelano Nicolás Maduro. Os cidadãos com quem o publicitário conversou por horas temem um apagão elétrico na ilha porque toda a energia usada em Cuba vem da Venezuela, quase de graça, por conta do subsídio financeiro do governo. Dinheiro cubano e cartão falso Ao pousar na capital, Célio trocou o Real brasileiro pela moeda corrente, duas na verdade, uma chamada CUC e outra CUP, mais conhecido como peso cubano. Além de o dólar americano funcionar como a terceira moeda no país. A maioria dos preços é negociada em dólar, principalmente nos estabelecimentos privados. Apesar de os estabelecimentos serem considerados privados, a estrutura ainda é precária, mas comparado aos serviços prestados pelo governo é muito melhor, segundo Célio. Ele acrescenta que praticamente todo o comércio é controlado pelo governo e mais da metade da população é servidora pública. “Os táxis são do governo, as carrocinhas de sorvete e até a barraquinha de cachorro-quente. Eu comi um cachorro-quente, é horrível, comida fria e tudo desorganizado”, relata Célio. Existe apenas uma empresa estatal de telefonia no país, chamada Etcsa, onde o publicitário ficou quase uma hora esperando num posto de atendimento para comprar um cartão telefônico, vendido por um dólar, mas não conseguiu. “Num dia comprei um cartão telefônico falso, que já tinha sido usado. Fui pedir informação e um policial me chamou num corredor e falou para um cara que estava escondido: ‘uma tarjeta para o moço’. Paguei dois dólares. Com certeza ele dividia o dinheiro com o policial”. Célio diz que todo mundo quer levar vantagem financeira em Cuba, em qualquer ocasião. “Qualquer informação que eu pedia, queriam me arrastar para um canto para tentar ganhar uma gorjeta na lábia. Eles não pedem dinheiro, eles te constrangem. Todos os banheiros – em hotéis, restaurantes, qualquer lugar – têm uma idosa com um rolo de papel higiênico na porta esperando uma gorjeta. Acho que eles alugam a idosa, não sei, mas ela está lá”, descreve Célio. Comércio paralelo e prostituição Em todos os lugares da ilha existem vendedores autônomos oferecendo produtos e serviços mais caros que os estatais. “Eu fui pedir uma informação a um policial de onde poderia usar internet no celular. Ele me chamou num canto escondido, perto de outro ambulante e disse ao homem que eu precisava de internet. Logo em seguida o policial saiu de perto e o homem colocou uma senha no meu celular pelo valor de três dólares e pude usar à vontade”, conta Célio Rezende. Os cubanos esperam com a nova Constituição que estes serviços paralelos não sejam mais realizados clandestinamente, segundo Rezende. “Para tudo que é estatal tem alguém oferecendo o mesmo serviço de forma privada e clandestina. Não existia a figura da empresa até a nova Constituição. Quem tem um restaurante é configurado como trabalhador autônomo, chamado de bistrô, mas não tem o documento de empresa. “Conheci um médico que tem um restaurante com 10 garçons. Todos os garçons ganham mais do que ele como médico. É um grande paradoxo”, resume. Assim como no Brasil, existem certos lugares ocupados por prostitutas nas ruas. O publicitário encontrou dezenas delas, principalmente em praças, esperando algum cliente. “Elas ficam com um cigarro na mão, te encaram e chamam de forma discreta porque não podem ser pegas pela polícia. A estratégia delas é que você a siga a uns 10 metros de distância para disfarçar. Se a polícia chegar, ela vira para um lado na rua e você para o outro. Mulher não fica andando muito próxima de homem na rua para não ser abordada pela polícia”. O publicitário seguiu uma garota de programa, nesta forma de operação, até uma pensão, para entender como funcionava a prostituição no país. Ao chegar à porta da pensão, conversou com a moça e esclareceu que não queria fazer o programa, pagou o valor de 25 dólares e foi embora. Na hora da conversa, a moça ficou constrangida, conta Célio, e desconfiada por não ter alugado um quarto na pensão. “É raro alguém pagar o valor do cachê e não realizar o programa, mas entendi como a coisa funcionava. É estranho como o cliente não tem contato com a garota. O processo é feito todo de longe e o cara só conversa com a moça quando estão sozinhos no quarto”. Nível superior, livros e corrupção A população cubana, quase em sua totalidade, possui um diploma de educação superior. O curso de Medicina continua sendo o mais estudado e o salário de um médico cubano é de US$ 40 mensais, um dos mais altos do país, perde apenas para os militares, que recebem os maiores salários do funcionalismo público – cerca de US$ 80 dólares. Como a população é altamente alfabetizada e estudada, os salários são padronizados para quase todas as profissões, segundo Célio, em média de US$ 20 a US$ 40 por mês. Perguntado se este valor seria um bom rendimento mensal, Célio esclarece que não dá para saber ao certo, mesmo depois de conversar com muitos cubanos, porque falta quase todo tipo de suprimento e alimento no país. Ao passear por um mercado, conhecido como “bodega”, Célio conta que falta tudo, principalmente papel higiênico, enquanto outros produtos sobram nas prateleiras, como café solúvel e leite em pó. Isso acontece por causa da corrupção dos agentes públicos que fazem as compras para as bodegas e importam produtos de outros países, como Rússia, Brasil, China, e outros. “Os cubanos me contaram que quem pagar a maior propina, vende a maior quantidade de produtos. Como exemplo é a falta de papel higiênico no país e a sobra de café solúvel, ou seja, pagaram uma boa propina para o café e compraram demais”, explica Célio. Como falta papel higiênico, os cubanos tomam banho todas às vezes depois das necessidades fisiológicas. As bodegas estatais vendem apenas o básico para que o cidadão sobreviva: arroz, feijão, açúcar e sal. Nos mercados privados também falta tudo e o pouco que se encontra, pelo menos em verduras e legumes, está estragado ou com o prazo de validade vencido. “Eu vi uma prateleira lotada de óleo de dendê, que é produto baiano. Eles nem sabem o que é, mas estava lá estragando na prateleira”. É raro encontrar carne para comprar e quando acha, compra-se apenas músculo de boi. Não existe outro tipo de carne na ilha, como as vendidas em outros países: alcatra, coxão mole, patinho e outros. Não é a toa que o prato mais vendido e consumido na ilha é o arroz com feijão e alguns legumes. “Uma coisa interessante é que a vaca é do governo e não se mata nenhuma vaca no país, ela é sagrada. Só tiram o leite da vaca, a carne é importada. Se a vaca fica triste, o cuidador tem que correr e avisar ao veterinário do governo porque se o cuidador for acusado de que a vaca morreu por maus tratos, ele pega 26 anos de cadeia”. Mas existem restaurantes privados onde se pode comer bem, segundo Célio. “Por preços mais altos você encontra lagosta, camarão, peixes e comida de qualidade. Mas não é o padrão do país”. Nas livrarias cubanas encontra-se muita biografia de Ernesto Guevara em dezenas de idiomas e mais livros de pessoas ligadas a ele, como a tia do Che, a mulher do Che, o empregado do Che e etc. “É monotemático. Ele é adorado no país. Mas dá pra achar livros do escritor norte-americano Ernest Hemingway porque ele morou em Cuba. No geral, os livros são bem editados porque são vendidos como souvenir, não para serem lidos”, diz Célio. O publicitário resume Cuba como um país bonito, mas carente de tudo. “O problema é que tudo é do governo e todo mundo trabalha para o governo, praticamente. Essa história de embargo dos Estados Unidos não justifica a pobreza da população. Se o embargo serve para todo mundo, por que o governo é ineficiente e a iniciativa privada não? Se os dois sofrem com o embargo”. Ele diz que não achou nenhum cubano satisfeito com o regime socialista. Apenas um cidadão entrevistado teme a chegada da violência se a política for alterada para o capitalismo de fato.